O título é, como se costuma dizer na gíria popular, ‘puxado’. O texto sê-lo-à ainda mais. E é-o de forma propositada. Porque o fundamentalismo associado ao tema do tradicionalismo costuma despertar pedidos estapafúrdios de suposto ‘respeito’, que no entanto nunca é recíproco. Os ‘modernos’ devem respeitar os ‘tradicionalistas’, sem que o contrário seja uma realidade. Eu, por mim, recuso-me a curvar-me perante aqueles que tanto mal têm feito ao Evangelho. Mal?!?! Sim, mal. Passo a explicar o porquê.
Um dos grandes erros do catolicismo foi a cedência à tradição. No catolicismo essa cedência à chamada tradição apostólica é feita à luz do dia, sem subterfúgios ou baseada em pressupostos escondidos. A tradição apostólica é feita segundo regras pré-definidas, sempre debaixo do argumento de que essa é a autoridade e a acção contínua da Igreja Católica, transmitindo tudo aquilo em que ela acredita desde o advento de Cristo até à actualidade. Segundo a Wikipedia, ‘esta acção contínua de transmissão é feita mediante a pregação, as instituições, o culto e os escritos inspirados’. Ora parte desta tradição, da qual também faz parte a Bíblia, vem dos Concílios, dos actos da Santa Sé, das palavras (discursos, pregações) e dos usos da Sagrada Liturgia. Os elementos básicos dessa tradição são a Bíblia, o Símbolo dos Apóstolos, o Credo e as formas básicas da liturgia da Igreja. Uma frase que sintetiza tudo isto é a proferida pelo Papa Paulo VI quando afirmou, em 1966, o seguinte: ‘a Igreja (Católica) não retira só da Sagrada Escritura a sua certeza a respeito de todas as coisas reveladas, porque da tradição oral e escrita devem ser recebidas e veneradas essas coisas com igual espírito de piedade e reverência.’ Ora, embora discorde, tenho de admitir…mais claro do que isto é impossível.
Ora, para os protestantes, esta ideia é um absurdo, já que nada substitui a Bíblia, a Palavra de Deus, ou sequer se equipara a ela. Este foi um os pontos que separou Lutero da Igreja Católica e o levou a empreender a Reforma. Até aqui, nada de novo. O que me leva a escrever sobre a catolicização do protestantismo é o que se passa a seguir a isto…
A ditadura da tradição
O passar dos séculos e anos fez mal ao protestantismo. Ou, pelo menos, a parte dele. É que esse passar dos anos deu ao protestantismo aquilo que ele não tinha quando foi feita a Reforma: uma tradição. E que tradição! Pesada, intolerante e asfixiante tradição!
É uma afirmação carregada, eu sei. Mas verdadeira. A esmagadora maioria das Igrejas protestantes europeias, especialmente no Sul, são esmagadoramente tradicionais, agarradas a conceitos de tradição ultrapassados e castradores da verdadeira experiência do Evangelho. Chegámos aquele que talvez fosse o grande medo de Lutero quando fez a Reforma: em algumas das Igrejas protestantes a única diferença que resta para a Igreja Católica é a inexistência de uma autoridade papal e de imagens de santos. De resto? C’est la même chose, mon ami…
Não é normal em nenhuma activididade (sublinho o NENHUMA) que a maioria da ‘oferta’ seja descontextualizada e esteja fora do seu tempo. Podem, isso sim, subsistir alguns nichos dessa mesma descontextualização, mas nada mais que isso, fruto de algum apego à tradição ou até de algum revivalismo, que não só aceita, como tem prazer no fazer as coisas como ‘se fazia antigamente’. Mas o protestantismo não tem um pequeno nicho tradicionalista. Tem uma gigante maioria, um monopólio da tradição, onde quem chega de novo rapidamente tem de se adaptar à regra segundo a qual, e passo a citar, ‘sempre foi assim’. Ao contrário do expectável, e até do que seria normal, temos um nicho quase inexistente de contemporaneidade e modernidade, em contraponto com uma ditadura do tradicionalismo. Ditadura essa que, como se não bastasse, passa a vida a abanar bandeiras para o outro lado, daquilo que supostamente não existe nesse lado. Bandeiras como a da santidade, ou a da genuinidade, ou a bandeira que mais me irrita, a do legalismo. A única bandeira que na realidade deveriam agitar bem alto é a da irrelevância, mas dessa esquecem-se regularmente devido a estarem tão preocupados com as restantes.
A catolização está consumada
Está consumada a catolicização do protestantismo desde o momento em que este se deixou enlear no labirinto da tradição. E que labirinto é este?
Falamos de um labirinto caracterizado por diversas formas de pensamento. O primeiro, e talvez o mais comum e óbvio, é o da ausência de necessidade de mudança. Se assim foi feito nos últimos anos, porquê mudar? A ausência de mudança tem trazido uma aridez crescente, que se traduz na incapacidade de dar às pessoas a tal água viva de fala o Evangelho. Se a Igreja, que é a imagem de Cristo, é um local árido, sem nada para oferecer para lá de uma experiência religiosa morta e cheia de imperativos legais, essa é a ideia que as pessoas fazem do próprio Deus. Se a Igreja está datada, amarrada a ideias concebidas há anos atrás, e sem relevância no hoje, então é essa a imagem de Deus que as pessoas construirão nas suas próprias mentes.
Por outro lado, se Deus é um Deus vivo, forte, poderoso, capaz, bondoso, gracioso, misericordioso, então onde está essa imagem nas Igrejas? A prova de que não está é a seguinte: perguntem a um descrente que caracteriza as Igrejas neste país com 3 adjectivos. Verão que nenhum desses adjectivos é qualquer um dos que mencionei atrás…
A catolicização da Igreja Protestante tem a prova irrefutável (no meu ponto de vista) na importância crescente do tradicionalismo. Não se trata de um regresso aos básicos, como muitos defendem, ou à Igreja primitiva. Trata-se de um retrocesso, da assumpção de caminho sinuoso cheio de leis e letra morta, em contraposição com as cartas de vivas de que Paulo fala. Essa prova irrefutável é, no entanto, bem menos leal do que a Católica. Enquanto os católicos tiveram a ‘decência’ de admitir a tradição de forma clara, para o Protestantes ela é um subterfúgio que, apesar de atacado, é utilizado de forma óbvia na esmagadora maioria das congregações. Como já disse, a diferença entre Católicos e Protestantes, nestes casos, esbate-se violentamente sem que muitos dêem conta disso…
O porquê de uma mudança
Enquanto tivermos o velho tradicionalismo a opor-se à verdadeira mudança, será difícil, mas alguém tem de o afirmar. Não se trata de mudar por mudar. Não se trata de mudar a Palavra. Trata-se de mudar aquilo que não é dogma, e que a própria Bíblia deixou em aberto para que pudéssemos interpretar conforme o tempo em que vivemos. E a forma, onde o tradicionalismo tanto gosta de se impor, não é dogma, logo, pode e deve ser mudado à medida que os tempos mudam também. Será isto um ataque ao Evangelho? Não me parece. A mudança torna-se tão necessária quanto mais clara fica para mim a irrelevância a que o protestantismo está confinado na actualidade. Essa irrelevância não é fruto de discriminação ou falta de atenção propositada. É fruto do caminho marcadamente tradicionalista (e que a a Igreja Católica também se tem esforçado por trilhar), em que a grande preocupação está em ser a voz moralizadora da sociedade. O Evangelho não é a voz moralizadora da sociedade, mas sim a voz transformadora da sociedade, o que são coisas bem diferentes. Ora, que tipo de relevância tem uma instituição que, incapaz de se mudar e transformar a ela própria, prega essa mesma mudança e transformação? Ora, nenhuma…
O murro na mesa
Talvez venha a ser dado por uma geração mais nova, que vai surgindo, e por aqueles que, sendo de outras gerações, o queiram dar também. Mas essa geração mais nova vai ter de resistir estoicamente à tentativa de clonagem que lhe é feita dia-após-dia por quem quer manter tudo como está. É um murro na mesa de que a Igreja precisa, as pessoas precisam, o País precisa e a Europa precisa. Há que encontrar rapidamente a mensagem de esperança, a mensagem transformadora. Essa mensagem tem um nome: Evangelho. Mas a sua apresentação tem de ser diferente. Já dizia a Bíblia que não se pode servir vinho novo em odres velhos. Creio sinceramente que o vinho novo espera ansiosamente por novos odres onde possa ser servido.